É um pequeno hotel rural, em Rio de Vide, no concelho de Miranda do Corvo, em Coimbra. Entalhado entre uma vinha e um olival, abriu em abril deste ano e está a conquistar os visitantes. A Quinta Dona Iria produz vinho e azeite que serve à mesa do seu restaurante, Safra, e nos oito quartos da casa, que conta a história de uma família e de uma aldeia, há música para pôr a tocar e ouvir de olhos postos na paisagem.
A história deste enoturismo podia muito bem ser contada num verso da música “Perdidamente” dos Trovante, até porque a banda faz parte da narrativa. Ermindo Dias, 68 anos, bancário reformado e empresário da restauração toda a vida, foi o sonhador que deu forma a este espaço, com o apoio incondicional do sócio, José Dias, 58. E a razão pela qual o fez está no coração que não o deixava em paz. Filho da terra, saiu cedo para estudar, para trás deixou os pais, Ermindo e Iria, e a casa da família.
Ainda jovem, entre os 20 e os 30 anos, Ermindo, como outros da aldeia, integrou a Associação Liga Regional Riovidense. “Na preparação das primeiras Jornadas de Cultura Tradicional em Rio de Vide, em 1982, convidámos os Trovante para atuarem em dois espetáculos: um no Teatro Académico de Gil Vicente na Semana Internacional de Teatro Universitário (SITU), e outro em Rio de Vide. Acertámos os detalhes e assegurámos o concerto que foi um evento histórico, na altura aquilo foi algo extraordinário”, conta.
Em 1984, a associação fez dez anos e o convidado foi Zeca Afonso. Outros como Carlos Zíngaro, Isabel Silvestre, Zé Eduardo, Luís Cília, Júlio Pereira ou a Brigada Victor Jara passaram pela terra, marcaram as gentes e deixaram histórias para contar.
A mãe de Ermindo, Iria, morreu muito jovem, com pouco mais de 50 anos, em 1988, e deixou-lhe o vazio do que ficou por viver. Afinal não ia haver mais tempo e ele, filho único, que, entretanto, conquistava os seus sucessos como bancário na Caixa Geral de Depósitos e empresário no restaurante O Trovador, na Sé Velha, em Coimbra, entre outros, sentia-lhe a falta. Quando o pai morreu em 2003, a casa ficou “abandonada, mas nunca esquecida”.
“O meu pai era um homem de trabalho. Foi o primeiro habitante da aldeia a ter um trator, foi um trabalhador agroindustrial muito ligado à produção de azeite”, recorda à New in Coimbra. Sempre ocupado, era mais ausente. Já a mãe, a quem dedicou o hotel, assumiu “um papel muito importante” na sua educação muito ligada à cultura e à arte. “Eu nem sempre fui o filho que quis, porque estava longe”, desabafa.
Em 2017, Ermindo aposentou-se. “Isto aqui estava tudo degradado”, recorda junto ao lagar que agora é atração de visitantes. “Foi a minha mãe que me deu força para erguer este espaço. Falhei com ela mais vezes do que devia. Esteja onde estiver, ela merecia”, afirma. Este amor perdido é agora cantado a toda a gente, como na canção dos Trovante, até porque o anfitrião está sempre na quinta e faz questão de ser um grande contador da história da sua vida e das que se cruzaram com ela.
A nova vinha da quinta foi plantada em 2015 e em 2018 o olival. “Eu pensava, falta aqui qualquer coisa”, recorda. E então a casa da família foi toda reestruturada, passou a ter oito quartos, e albergou o restaurante Safra na base. O projeto final abriu ao público em abril deste ano. “Este é um conceito integrado, produzimos vinho e azeite para consumo próprio, no restaurante e nas provas, mas também não compramos limões, laranjas, limas, diospiros, maçãs”, descreve o proprietário.
Na casa dos pais que agora é um aconchegante hotel rural, onde o conforto e a modernidade se ligam naturalmente com as peças antigas de mobiliário e decoração, cada quarto tem o nome de um músico que passou pela associação da terra naquela fervilhante década de 80. A decoração do espaço ficou a cargo da Móveis Tralhão que lhe imprimiram um toque de modernidade, com linhas simples.”É um alojamento totalmente diferenciador”, garante Ermindo Dias.
Logo nas rasgadas janelas dos oito quartos, onde uma noite custa entre os 80€ e os 90€, percebemos a paisagem que faz o tempo andar mais devagar. Vê-se toda a extensão da quinta e as serras mais próximas, mas há um detalhe que salta à vista e marca toda a experiência. Em cada quarto, há um QR code que, ao ser ativado, nos remete para uma playlist do músico que lhe dá nome. Podemos ficar ali imersos na música, a imaginar como seria a vida na quinta há uns anos, as lagaradas, as vindimas, como teriam sido aqueles concertos marcantes numa aldeia com apenas 200 habitantes. Ou podemos sair e explorar.
No lobby do hotel, há uma arca cheia de discos de vinil, que podem ser postos a rodar num gira-discos antigo e livros para ler à disposição. Num edifício ao lado está o lagar, que começou por ser de varas, depois foi de prensa e finalmente de linha contínua. Há também uma sala-museu, cheia de relíquias, entre as quais recortes de jornal que dão conta da vida cultural agitada da aldeia, nos anos 80, mas também instrumentos agrícolas e musicais. É aqui que está a fotografia da família. Ermindo, ainda miúdo, de mãos dadas com os pais.
Num patamar inferior, depois de passar a antiga eira, e já em direção à zona ajardinada da piscina, está a adega, onde se fazem almoçaradas, jantares de empresas, wine games e provas de vinho (os preços são sob consulta). “Este espaço foi pensado ao pormenor e está exatamente como o projetámos”, afirma José Dias, sócio de Ermindo. Trabalham juntos nos negócios da restauração há mais de 30 anos, mas os dois concordam que este é o projeto das suas vidas. Aqui a sustentabilidade é palavra de ordem e valeu-lhes já o símbolo Green Key, que reconhece estabelecimentos com boas práticas ambientais e sociais.
É muito perto da adega que está a entrada do restaurante Safra ao qual os hóspedes podem aceder sem terem de sair do hotel através de um acesso interior. A cozinha de autor do chef Miguel Batista (que já trabalhou com Henrique Sá Pessoa), mas também a gastronomia tradicional portuguesa, em especial a da região, estão a fazer do restaurante, aberto ao público em geral, a estrela da quinta.
Na sala de refeições não há televisão. Há conversas, tertúlias, silêncios para saborear. “É para as pessoas porem a escrita em dia, para estarem a conversar uns com os outros”, explica Ermindo Dias que quer aqui dinamizar um festival das artes, em breve. “A intenção é abrir a casa o mais possível à comunidade. Que quem vem se sinta em casa, possa ouvir a história do que era a quinta, a apanha da azeitona, do que aqui se passou e do que aqui se passa. É fundamental resgatar as memórias”, insiste.
A ligação à família e à cultura está em quase tudo. Maria Ferreira, 20 anos, acabada de sair do Conservatório de Música de Coimbra, tocadora de clarinete, é quem recebe os clientes no restaurante. Está a aprender a servir às mesas, enquanto concilia este seu primeiro emprego com os ensaios da banda filarmónica da aldeia. O azeite da quinta chama-se Dona Iria e o vinho da casa (15€ a garrafa), o Tocata, tem, na última colheita, um rótulo a fazer lembrar as teclas de uma concertina.
No Safra, onde o preço médio por pessoa é de 25€, a carta é como toda a quinta: cruza o tradicional com o moderno. De entradas pode escolher, por exemplo, um fresco e surpreendente escabeche de maracujá com filete de cavala picante (6€), papelote de salmão com queijo brie (6€), croquetes de alheira de caça (6€), entre outros.
Como não podia deixar de ser, o bacalhau está muito presente no menu. A sugestão é lagarada como na safra do nosso lagar (15€) e o bacalhau lascado em cama de esmagado de batata e legumes salteados (15€). Nos pratos vegetarianos, destaque para os risottos (11€), de cogumelos ou legumes.
Nas carnes, evidencia-se o carré de borrego (18€), a chanfana (14€) e os grelhados, como o chuléton, t-bone ou tomahawk (40€/kg). Para os miúdos há douradinhos, bifinhos e carbonara (7/8€). Para finalizar, há creme bruleé (4€), com uma receita muito especial do chef, uma inesperada mousse de chocolate desconstruída (5€) e, para os mais gulosos ou indecisos, a trilogia Safra (8€).
De seguida carregue na galeria e conheça melhor a Quinta Dona Iria.