A cerveja é uma das bebidas mais apreciadas no mundo. Há quem não passe sem uma fresquinha ao final do dia, quem não a dispense enquanto vê a bola com os amigos e quem não lhe resista nos dias de verão. De tão querida que é ganhou até alcunhas como “jola”, “bjeca” ou “loira”. Há muitos que a bebem, mas tirar bem uma cerveja é uma arte que não está ao alcance de todos. Coimbra tem um “tirador de cerveja” profissional: Mário de Jesus Ferreira é diplomado na matéria duas vezes.
Este conimbricense de 69 anos tirou o primeiro curso a 5 de julho de 1984, na altura estava ao serviço do bar das Caves Primavera, em Aguada de Baixo, e o segundo, a 13 de novembro de 1995, quando trabalhava na Cervejaria da Fábrica, em Coimbra. A qualificação está atestada em dois diplomas passados pela Central de Cervejas, o mais antigo está em exposição no museu da Praxis, onde se conta a história da cerveja e a ligação da cidade à sua produção, o outro na sua casa como recordação.
Mário de Jesus Ferreira é uma cara conhecida em Coimbra. Ao longo de quase 50 anos trabalhou em espaços emblemáticos, como o café Arcádia, a Brasileira, as Pastelarias Vasco da Gama, Camões ou até a discoteca A Teia, em Miranda do Corvo. Conhecedor da cidade, é um grande contador de histórias e habituou-se a partilhá-las com quem se foi cruzando e sobretudo com quem servia nas casas por onde passou.
Começou a trabalhar cedo, aos 13 anos, como paquete numa loja de peças de automóvel trabalhou para advogados de renome, na ESTACO — Estatuária Artística de Coimbra, fez grades para os azulejos, vendeu roupa em feiras, discos porta a porta e até cartões de descontos. “Eu mudava porque me ofereciam mais dinheiro. Mais 100 escudos (0,50€), mais 200 escudos (1€) e eu ia mudando”, recorda à New in Coimbra. Em 1974, fez a tropa no Regimento de Infantaria do Porto e um curso de escriturário.
No caminho que foi trilhando, o mundo dos cafés e restaurantes surgiu por acaso e, como sempre fez com tudo, não lhe virou as costas. Já estava casado com Anabela, a companheira de uma vida, quando começou a explorar o bar da Associação Cristã da Mocidade, em Coimbra, mas as coisas não corriam como ele queria e, no início dos anos 80, abriu uma vaga para o café-restaurante Arcádia.
“Disse que sabia fazer tudo, mas não sabia, ia vendo como os mais velhos faziam e aprendendo”, confessa. Foi aí que tirou pela primeira vez uma cerveja. “Estive um ano e tal às mesas e ao balcão”, diz. “O que mais me pediam era um fino”, assegura Mário.
A palavra “fino” para pedir cerveja terá tido origem precisamente em Coimbra, na década de 1940, pela intervenção de um boémio de nome Toninho Saraiva. Segundo o relato no livro de memórias Boémia Coimbrã, de A. Nicolau da Costa, pedia sempre “um copo de cerveja de vidro fino!” e assim ficou.
Quanto mais finos Mário tirava, mais percebia que “tirar cerveja é uma arte, requer um certo ritual”. Foi quando começou a trabalhar no complexo das Caves Primavera, em Vale do Grou, Aguada de Baixo, que aprendeu verdadeiramente o métier. “Eu servia às mesas, estava no balcão, dava apoio ao economato, ajudava no salão de chá e na discoteca”, explica. Foi aí que conheceu “um rapaz de Terras do Bouro” que lhe ensinou tudo, principalmente sobre cocktails. Foi também ao serviço desta casa que tirou o primeiro curso de tirador de cerveja.
“Na altura os barris de cerveja metálicos requeriam destreza e cuidado, nem toda a gente conseguia trabalhar com eles. Surgiram os cursos de uma marca de cervejas, onde mostravam como eram os barris por dentro, faziam provas, diziam como se devia tirar uma boa cerveja”, conta. Foi e passou com distinção. Quando mais tarde saiu das Caves Primavera, novamente para o Arcádia, trouxe consigo o diploma e muitas histórias. Recorda com humor o dia em que um cliente brasileiro lhe perguntou: “O senhor serve cachorros?” e ele respondeu num ápice: “Eu aqui sirvo toda a gente”.
Foi mais tarde, em 1994, quando estava na Cervejaria da Fábrica que surgiu a oportunidade de tirar o segundo diploma de tirador de cerveja e não pensou duas vezes. Reformado há seis anos, não consegue perder o hábito de observar (e até avaliar) quem o serve sempre que vai a um café. De vez em quando lá bebe uma cerveja, mas garante que as coisas hoje são “muito diferentes”.
Uma das primeiras regras que lhe ensinaram para tirar um bom fino foi “não usar detergente na lavagem dos copos” só a pressão da água. Além disso, no momento de tirar o líquido do barril, o copo deve ter uma inclinação de 45 graus e enche-se, lentamente, deixando “dois dedos de espuma”, descreve de forma metódica e pausada.
A questão da pressão também é pertinente, sublinha, falando do dióxido de carbono que faz parte da composição natural da cerveja e permite a saída rápida e direta para o copo. Por isso, se a deixarmos muito tempo no recipiente, vai perdendo o dióxido de carbono e fica, como se costuma dizer, “morta”.
“Naquela altura, tinha colegas que não sabiam tirar cerveja, mas havia outros que tiravam uma atrás da outra com grande rapidez. Eu também cheguei a fazer isso”, adianta, ele que tem no seu currículo profissional a passagem pela discoteca A Teia, em Miranda do Corvo, onde organizou inúmeras festas temáticas, mas também pelo bar dos Hospitais da Universidade de Coimbra e inúmeros serviços de catering. Foi num deles que conheceu o então presidente da República, Mário Soares, que lhe pediu um pastel de bacalhau e um sumo de laranja natural, como não havia o sumo natural terá dito um palavrão.
“Por onde passei deixei sempre gente conhecida. Havia clientes que faziam questão de ir aos sítios onde eu estava a trabalhar para me verem e falarem comigo e agora sentem a falta, dizem-me isso”, confidencia. Há seis anos, quando trabalhava n’A Brasileira arrumou definitivamente os copos para gozar a reforma com a mulher.
“Sempre adorei o contacto com as pessoas, mesmo hoje conhecem-me onde quer que eu vá”, diz cheio de orgulho. Nas visitas guiadas em que participam, agora que têm mais tempo livre, Mário é muitas vezes convidado pelos guias para tomar da palavra e contar as suas histórias de café.
“Sou de uma geração que trabalhava na hotelaria por gosto, por paixão”, frisa, mostrando-se preocupado com as condições de trabalho do setor nos dias de hoje. “Não há pessoas para trabalhar, que saibam, mas os patrões também não sabem dar o valor, os empregados são mal pagos e sujeitam-se a muitas coisas”, afirma.
Nunca teve um fino que lhe voltasse para trás, mas é dos que acha que o cliente “nem sempre tem razão” e explica porquê: “Numa altura em que só usávamos leite do dia num café onde trabalhei, quando cheguei de manhã para ferver o leite vi que estava estragado, nisto entrou um cliente que me pediu um galão e eu expliquei-lhe que não havia leite e então ele respondeu: dê-me um galão mesmo sem leite, só com café”.
De seguida carregue na galeria e veja algumas das imagens do baú deste tirador de cerveja.