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Depois de ter a vida íntima exposta na Internet, Inês criou a associação Não Partilhes

A jovem natural de Figueira da Foz não é um caso isolado. Canais como o Telegram são “os piores inimigos para as vítimas” de abuso sexual.
Tem 25 anos.

Inês Marinho tinha 21 anos quando descobriu que andava a ser partilhado, sem consentimento, um vídeo íntimo da jovem em grupos do Telegram, Reddit e Twitter. Antes disso, teve conhecimento de homens a partilhar na Internet as fotografias em biquini que colocava nas redes sociais, bem como o nome do seu perfil. 

A jovem, natural da Figueira da Foz, é uma das vítimas de violência sexual baseada em imagens (VSBI). Como ela, há muitas outras mulheres que veem a sua vida privada e intimidade a ser exposta na Internet todos os dias. É tempo de se unirem para gritarem a uma só voz: não partilhes. É precisamente esse o nome da associação fundada por Inês Marinho, de 25 anos, cujo objetivo é consciencializar a sociedade para crimes de partilhas indevidas.

A ideia, diz, surgiu após terem partilhado um vídeo sem o seu consentimento, no final de 2019. “A primeira sensação foi de pânico, ansiedade. Era impossível de me identificar, não tenho tatuagens e não aparecia a minha cara, mas aparecia o meu nome em cima”, começa por contar à NiC.

Assim que percebeu o que estava a acontecer, confessa que foi como se lhe estivessem “a tirar o tapete dos pés”. “Fiquei meio perdida, percebi que já me tinha saído das mãos. Falei com a minha família e amigos mais próximos e fiz várias queixas, sabia que aquilo não era certo”, diz.

Os pais foram os primeiros a avisá-la de que se tratava de um crime e incentivaram-na a fazer queixa na polícia. “O meu namorado na altura também me apoiou emocionalmente e foi um suporte durante todo o percurso. Quando o vídeo foi partilhado já namorávamos, mas nunca o viu. No entanto, viu comentários horríveis que eu recebia e ficava irritado, mas focava-se sempre em apoiar-me”.

Com o apoio da família e amigos, que nunca lhe apontaram o dedo, conseguiu superar a situação, apesar de ser “uma doença crónica”. “Tive de aprender a viver com isso, a saber que existe conteúdo meu espalhado na Internet. É a minha realidade, mas este pensamento não está acessível a muitas pessoas, que por vezes não têm amigos com quem desabafar”, diz.

Inês apresentou várias queixas, mas as denúncias, contudo, acabariam por ser arquivadas — tal como as queixas de milhares de mulheres que se encontram na mesma situação. Na altura, Inês foi adicionada num grupo com outras raparigas que estavam a passar pela mesma situação. Foi aí que surgiu a ideia de criar uma página no Instagram com frases e informações sobre o abuso sexual com base em imagens.

“A página teve um grande boom logo no início. Começámos a ter muitas pessoas a pedir ajuda, a contar a sua história”, revela.

 
 
 
 
 
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O que começou por ser um movimento tornou-se oficialmente uma associação em 2021. Hoje, já são mais de 38 mil seguidores nas redes sociais. A luta de consciencializar a sociedade para este crime continua a toda a força, até porque a partilha de mensagens ou imagens em plataformas digitais parece ser uma prática cada vez mais comum. 

“O Telegram é o pior inimigo de todas as pessoas que foram vítimas. Pedem-se respostas, denunciamos como conteúdo pornográfico não consentido e ninguém diz nem faz nada. Até há bem pouco tempo não respondiam às diretrizes europeias. A polícia pede nomes, contactos, mas não dão nada”, revela a jovem.

Neste serviço de mensagens instantâneas, a NiC descobriu que há grupos em Portugal com mais de 70 mil membros, onde são partilhadas fotografias de mulheres que foram publicadas pelas próprias nas redes sociais, exemplos de imagens que enviaram aos companheiros em privado ou até mesmo fotos que lhes são tiradas sem que elas saibam.

Os administradores e membros dificilmente são descobertos, mas as denúncias continuam a ser feitas. Além das queixas, a associação Não Partilhes promove palestras escolares ou em casas de acolhimento temporário; tem uma equipa jurídica para dar acompanhamento; e está a construir neste momento uma equipa de psicólogos para apoiar as vítimas.

Todas as semanas, confessa Inês, a Não Partilhes recebe testemunhos de pessoas que estão a passar pelo mesmo que a jovem enfrentou. “Já tivemos mais de 1500 pessoas a entrar em contacto connosco, de todas as idades. A mais nova tinha nove anos e a mais velha mais de 60. São todos casos diferentes, mas todos em que é muito complicado ver uma finalidade”.

Quando existem grupos como os do Telegram, as pessoas “estão de mãos e pés atados”. Mesmo quando cabam por ser banidos, voltam a ser criados novos pouco tempo depois. É “uma bola de neve”. O máximo que se pode fazer, neste sentido, é tentar mostrar às pessoas que cometem estes crimes o quão errado é partilhar conteúdo sem consentimento e o quanto isso afeta a vida da vítima.

“A palavra prevenção é um bocadinho ingénua. É difícil prevenir quando já nos tiram fotografias na rua, debaixo da saia. A maioria das pessoas não consegue sair destes problemas, tudo porque as mulheres são vistas de uma maneira completamente diferente da dos homens. Quando a mulher é livre e sexual, acaba por ser julgada na sua liberdade e isso é usado contra ela como uma arma”.

Inês Martinho acrescenta: “Os conselhos que posso dar é para estarem atentas, para terem atenção às pessoas que têm a sua volta.  Falo mais para mulheres porque infelizmente somos a maioria”, afirma.

Nestes casos, além das denúncias na polícia, o apoio dos amigos e familiares é de extrema importância. “Não devem dizer coisas como ‘devias ter pensado melhor’ ou ‘meteste-te a jeito’. Temos que ter um discurso menos de culpabilidade e mais de apoio, porque é disso que as pessoas precisam”, sublinha. 

É tudo isto que os membros da associação costumam partilhar nas palestras que dão. Quando a audiência é composta por miúdos, focam-se mais na segurança online, enquanto que para os adolescentes é abordada a temática das nudes e os cuidados que devem ter. Já nas redes sociais são partilhados também conteúdos educativos, como dar a conhecer as categorias da violência sexual online ou como reconhecer conteúdos gerados por Inteligência Artificial (IA).

Aproveite e leia o artigo da NiC sobre o canal português no Telegram onde 70 mil homens partilham conteúdo sem consentimento todos os dias.

 
 
 
 
 
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