O caso correu as redes sociais há mais de um ano e era chocante. Um utilizador de portagens terá acumulado 31 dívidas por passagens nos pórticos automáticos das ex-SCUT. A falta de pagamento levou a que fossem emitidos avisos de cobrança, que devido a um erro de morada, foram parar a outro local. Quando se aperceberam da dívida, o valor ascendia a mais de 63 mil euros.
O caso, que chegou mesmo ao “Polígrafo”, levou a que a concessionária Ascendi admitisse o valor, que decorria da normal aplicação da lei. A existência de casos semelhantes tem sido recorrente, sendo que até a própria DECO lançou uma campanha para tentar mudar o sistema que tem dado origem a coimas verdadeiramente astronómicas.
A importância desta mudança revelou-se urgente a Carlos Guimarães Pinto, deputado à Assembleia da República pela Iniciativa Liberal, quando pediu aos seus seguidores que lhe revelassem “exemplos de multas absurdas”. As multas decorrentes das passagens nos pórticos das ex-SCUT foram, revela à NiT, uma das mais referidas.
“Não consigo verificar caso a caso, mas chegaram-me relatos de casos, com imagens do Portal das Finanças, onde mostravam dívidas de 80 e 40 mil euros. Tudo porque há um ou dois anos andaram duas semanas sem Via Verde”, explica o deputado. “Dívidas que em princípio deveriam ser pequenas acabam a destruir a vida das pessoas.”
As primeiras vias com portagens sem custo para o utilizador (SCUT) chegaram a Portugal no final dos anos 90, até que em 2011, o Estado procurou renegociar os contratos de concessão para alegadamente reduzir custos. Em 2011, estas vias passaram a cobrar portagens e, à falta dos mecanismos tradicionais, foram instalados pórticos automáticos que leem automaticamente a matrícula dos veículos.
O valor de cada passagem é posteriormente colocado a pagamento, num sistema que tem sido alvo de numerosas críticas, desde logo porque o valor só pode ser pago ao fim de 48 horas após a viagem. A partir desse momento, o utilizador tem 15 dias para efetuar o pagamento. No final do prazo, se o valor não tiver sido liquidado, são enviados avisos de cobrança e respetivas coimas. Ao valor da portagem acresce o pagamento de custos administrativos de 0,32€ por viagem, até um máximo de 2,56€.
A partir daí, os valores da coima vão aumentando. “As contra-ordenações (…) são punidas com coima de valor mínimo correspondente a dez vezes o valor da respetiva taxa de portagem, mas nunca inferior a (euro) 25, e de valor máximo correspondente a 50 vezes o valor da referida taxa”, refere a Lei n.º 25/2006.
Isso significa que uma viagem curta de passagem por um único pórtico que acarrete o pagamento de 0,70€ pode dar origem a uma coima acima dos 50€. Se o valor da viagem subir para os 8€, pode chegar a um valor acima dos 500€. Mais: os valores não são cobrados pela concessionária, mas pelo Estado através da Autoridade Tributária, o que torna o procedimento mais célere e mais implacável.
“Existem aqui três problemas. Desde logo, a forma como se permite que esta cobrança de portagens das concessionárias, que são tecnicamente privados, seja feita pela Autoridade Tributária (AT). O segundo problema tem a ver como a forma como a AT faz essas cobranças: mesmo que sejam dívidas pequenas, adiciona coimas e custos administrativos elevados”, explica o deputado da Iniciativa Liberal, que apresentou na Assembleia da República uma proposta de alteração da lei e que irá ser discutida e votada a 12 e 13 de janeiro.
“A terceira questão é o método que é usado para cobrar as portagens e que tem apresentado muitas falhas. A portagem só está disponível 48 horas depois e nesse período, há o risco de as pessoas se esquecerem ou não conseguirem ir aos CTT fazer o pagamento. Muitas vezes não recebem os avisos em casa, bastando para isso que a morada do livrete seja outra ou contenha um erro. De repente, têm em cima delas uma contraordenação fiscal sem ter havido dolo ou negligência na falta de pagamento.”
Tudo começa no sistema de pagamento, que nas ex-SCUT não recorre às portagens tradicionais e que posteriormente oferece um sistema de pagamento pouco simplificado. Carlos Guimarães Pinto sublinha também que mesmo “em casos de negligência ou dolo”, a “punição por não pagar uma portagem de 1€ não podem ser 300€”. “Não é justificável. As multas são excessivas.”
As críticas do deputado dirigem-se também ao método de cobrança. “A Autoridade Tributária tem algo que mais ninguém tem, que é o direito de execução prévia, isto é, podem executar o devedor antes mesmo de ir a tribunal. Muitas vezes as pessoas acabam com casas e carros penhorados por dívidas que até estão a contestar”, nota. “Isto leva a um problema maior que é o facto de a AT fazer estas cobranças. Fazem, por exemplo, as cobranças das quotas das ordens profissionais. Quando se confrontou o bastonário da Ordem dos Advogados, ele disse que tinha que ser assim porque cobrar dívidas em Portugal é muito complicado se tivermos que recorrer à justiça. Daqui a pouco temos empresas privadas a pedir à AT para cobrar todas as dívidas.”
A colocação destas coimas no plano de dívidas à Autoridade Tributária pode ter outro efeito perverso. “Muitas vezes as pessoas precisam de certificados de que não têm dívidas fiscais para as mais diversas coisas”, justifica.
A mesma lei que regula o cálculo das coimas determina igualmente a distribuição dos valores cobrados. Se o valor for pago à empresa que explora a via, 60 por cento do valor reverte para o Estado e 20 por cento para a própria entidade. Se apenas for paga após processo contra-ordenacional, 40 por cento reverterão para o Estado e 20 por cento para a entidade — com as outras percentagens a caírem no bolso das Estadas de Portugal e da Direção-Geral de Viação.
“Quanto mais incumprimento houver, mais coimas haverá e mais receitas têm todos os intervenientes nos processos”, conclui Carlos Guimarães Pinto. “É o incentivo perverso para que não se monte um bom sistema.”
É também para alterar o sistema que a Iniciativa Liberal pretende discutir o tema no Parlamento. “Na proposta pedimos duas coisas: que a coima e os custos administrativos não ultrapassem o triplo da portagem original [num valor nunca inferior a 10€]; e que esta lei se aplique retroativamente aos casos que já estão em cobrança, a todas as pessoas que já tem milhares de euros em dívida.”
Antes de o tema ser novamente debatido a 12 de janeiro, as portagens nas ex-SCUT foram alvo de outra votação na Assembleia da República em 2021, com o PCP a pedir o fim das portagens e das parcerias público-privadas. Uma proposta rejeitada pela Iniciativa Liberal.
“Nesta questão das ex-SCUT, temos que olhar caso a caso e perceber o que acontece em cada uma. Temos que olhar para os benefícios que decorreriam de retirar as portagens nessas autoestradas e perceber se superam os custos para todos os contribuintes”, explica. “Abstemo-nos dessas propostas porque ninguém nos apresenta uma análise custo/benefício. É mais fácil, até para comprar votos junto das populações, dizer que vamos acabar com as portagens. Estamos a falar de várias centenas de milhões de euros que alguém vai pagar.”