Produzir um pão de ló sem fermento, uma farinheira com batata, cozinhar chanfana com vinho branco, ou juntar canela e açúcar a morcelas de sangue — para que estas se mantenham conservadas, foram alguns dos ensinamentos culinários que Olga Cavaleiro tirou pelas 12 aldeias históricas que percorreu no centro do País.
A estas lições, junta-se o modo de confeção de outras receitas, como o serrabulho de seventre, feito com toucinho da barriga do porco; papas de ralão, à base de farinha de milho, água, leite e açúcar; morcela de fígado (suíno); e até migas de peixe. Todas estão presentes no livro de Olga, “Receitas Que Contam Histórias”, que venceu o Prémio de Melhor Livro de Cozinha Portuguesa no Mundo, atribuído pela Gourmand World Cookbook Award, a 18 de junho, no Estoril.
A relação da autora com as especialidades tradicionais portuguesas começou na infância. Os seus pais, Afonso e Natália Cavaleiro fundaram, na década de 70, a Afonso, a icónica pastelaria de Tentúgal que produz os famosos pastéis e queijadas tipícos da região.
Olga, atualmente com 54 anos, assumiu o negócio familiar e tornou-se investigadora no setor. O seu percurso profissional começou, porém, longe da cozinha. Licenciou-se em Sociologia e, em 1996, concluiu o curso de pós-graduação em Direito da Comunicação. Chegou a trabalhar como socióloga em Coimbra e, apesar de sempre ter tido como mote “uma vertente social e de unir os grupos e a comunidade”, o trabalho de gabinete não era para si.
No início dos anos 2000, regressou a Tentúgal, onde nasceu e cresceu, e foi responsável, em 2007, pela qualificação do pastel da vila como Indicação Geográfica Protegida (IGP). “Isso fez-me entrar num mundo muito particular — o da cozinha portuguesa”, declara à NiC. Durante nove anos foi presidente da Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas e, em 2018, concluiu o Mestrado em Alimentação, Fontes, Cultura e Sociedade. Hoje dá aulas de História e Cultura da Gastronomia Portuguesa na Universidade do Porto.
Contas feitas, já escreveu sete livros — todos sobre a cozinha tradicional do nosso País. “São sinónimo de muito trabalho, mas faço tudo isto com muito gosto”, garante. O mais recente prémio foi atribuído ao segundo, “Receitas Que Contam Histórias”, que nasceu de um desafio lançado pela associação de desenvolvimento turístico “Aldeias Históricas de Portugal”.
“Exigiu muito de mim. Escrevi praticamente durante todos os dias, apenas parei dois dias no Natal e um na Páscoa”, conta. Olga ainda sabe de cor as datas exatas do início e fim da redação do texto: iniciou a 1 de novembro de 2020 e terminou a 4 de junho de 2021.
O trabalho, que contou com o apoio de Marta Gonçalves na recolha de documentação, assenta, segundo a autora, em dois pilares fundamentais: a identidade gastronómica de cada lugar, segundo as pessoas que lá vivem; e uma interpretação do ponto de vista cultural e histórico.
O livro constrói, assim, uma carta gastronómica das 12 aldeias históricas, do interior centro do País (Almeida, Belmonte, Castelo Mendo, Castelo Novo, Castelo Rodrigo, Idanha-a-Velha, Linhares da Beira, Marialva, Monsanto, Piódão, Sortelha e Trancoso) e diferencia-se por, como o título indica, narrar as histórias por trás de cada receita. “As receitas só fazem sentido se as ligarmos às pessoas e as Beiras são todas muito diferentes. Por isso, fiz uma ampla descrição sobre elas”, afirma.
Ao longo de cinco meses, Olga acompanhou o processo de confeção de vários pratos regionais (60 por cada aldeia), feitos por 90 pessoas. “Encontrei novas receitas e falei com locais que, até então, ainda não tinham sido ouvidos.”
Assistiu a matanças, à confeção das receitas, incluindo nas épocas natalícia e pascal, bem como durante as festas de cada povoação, pois “a gastronomia é uma forma de nos relacionarmos com a comunidade, família e até com a divindade”, explica.

Desconstruir, de forma realista, “aquilo que várias entidades dizem que é o prato típico da região”, foi um dos objetivos da autora. Afinal, o que importa, é “o que as pessoas sentem como delas e não o que lhes é imposto”.
Os pratos ganharam um rosto, que Olga divulgou nas páginas da sua obra. “Cada receita tem, além da história e do contexto em que foi preparada, uma fotografia da pessoa que a partilhou. Segue, igualmente, o seu nome, idade e aldeia onde reside”, explica.
Sendo um retrato fiel da forma que os locais vivem a cozinha, os modos de confeção estão todos explicados no livro, e podem ser replicados, mas fogem à versão estilizada. A quantidade de ingredientes utilizados é “ao gosto de cada um” e, por isso, é variável. “Não quis apresentar a ideia de uma receita original, porque, para mim, isso não existe”, destaca. A obra acabou por se estender a 13 restaurantes locais, que passaram a disponibilizar os pratos que nela constam.
“Não queria que este fosse apenas um livro bonito. A minha meta era ter um documento de trabalho que permitisse a qualificação e recuperação destas receitas”, conclui a investigadora que está, de momento, a escrever outra obra, cujo tema permanece em segredo.
O livro “Receitas Que Contam Histórias”, editado pelo grupo Leya em 2023, tem 500 páginas e custa 44€. De momento, encontra-se esgotado.
Carregue na galeria para ver imagens de alguns dos produtos das Aldeias Históricas, bem como dos habitantes que ajudaram Olga a recolher as receitas.