Susan Lorincz sempre acreditou que era “a melhor vizinha possível”. Em 2024, esse autoelogio ganhou um tom irónico: a mulher da Flórida foi condenada por homicídio, num caso que expôs as tensões raciais e o falhanço das autoridades em prevenir uma tragédia anunciada. Ainda hoje, Lorincz insiste que agiu em legítima defesa, embora as imagens das câmaras corporais da polícia revelem uma realidade mais sombria, agora reconstruída pela Netflix em “A Vizinha Perfeita”, um documentário que desmonta a fronteira entre medo, preconceito e violência, a grande novidade da semana na Netflix.
A produção estreou na plataforma a 17 de outubro. Realizada por Skye Borgman, responsável por “O Meu Pai, O Assassino BTK” e “Abducted In Plain Sight”, é atualmente o quarto filme mais visto em Portugal e o segundo no mundo inteiro.
O documentário retrata o caso de uma mulher branca da Flórida que, em 2023, matou a tiro a sua vizinha, uma mãe negra com quatro filhos. Ao contrário de outras produções do género, não são reveladas entrevistas. Durante o filme, são exibidos dois anos de gravações da polícia (através das suas body cams) a lidar com Lorincz, que se queixava com frequência de barulho feito por miúdos que brincavam num terreno perto da sua casa, em Ocala. Há ainda imagens de entrevistas com outros vizinhos.
Segundo a suspeita, os jovens, muitos com menos de 10 anos, gritavam-lhe para se calar, invadiam o seu quintal e ameaçavam matá-la. Dizia ainda que temia pela própria vida. No filme, aparecem imagens das crianças que gravava para mostrar à polícia e sempre que falava com os agentes, apresentava-se como “A Vizinha Perfeita”, nome que acabou por dar título ao projeto.
Apesar do registo constante de queixas, os polícias encaravam-nas com ceticismo. Lorincz era a única moradora com este tipo de problemas. As crianças brincavam no quintal do vizinho do lado, não no dela. Esse vizinho incentivava os jogos e até lhes ensinava futebol americano. Mais tarde, Lorincz pediu ao senhorio que colocasse um sinal de “entrada proibida” no seu relvado.
As histórias entre ambos os lados são completamente diferentes. Os miúdos, por exemplo, disseram à polícia que apenas brincavam às escondidas e que Lorincz os assediava e era racista (chegou a chamá-los de “escravos” e “pretos”). Também lhes terá apontado armas, segundo vários relatos.
Num dos confrontos relatados, os rapazes do bairro afirmam que lhes atirou com patins. Lorincz, por sua vez, disse que “apenas os estava a devolver” e acusou-os também de tentarem roubar a sua carrinha. “Temos apenas 11 anos”, ouve-se um deles dizer no documentário.
Embora revele muito do passado do conflito entre ambos os lados, o filme centra-se principalmente no incidente de 2 de junho de 2023, quando Susan afirmou que alguns pré-adolescentes estavam a invadir a sua propriedade. Depois de lhes pedir que saíssem, prontamente chamaram a mãe. A mulher ligou, mais uma vez, à polícia e o operador garantiu que os agentes estavam a caminho.
Momentos depois, a norte-americana afirmou que estava dentro de casa quando Ajike Owens, gerente de um McDonald’s e mãe de quatro miúdos, apareceu à porta e começou a bater com força. Lorinca pegou numa arma e disparou, sem perceber que o filho de Owens estava mesmo ao lado. “Pensei que ela me ia matar”, contou Susan à polícia, insistindo repetidamente que o disparo não foi premeditado.
Quando os agentes lhe deram a oportunidade de escrever uma carta de desculpas, aceitou e pediu perdão aos miúdos, com a desculpa de ter “agido por medo” e que temia pela própria vida.
As leis de autodefesa da Florida conhecidas como Stand Your Ground permitem o uso de força letal quando há presunção de medo. Estatísticas mostram que homicídios cometidos por atiradores brancos contra vítimas negras são mais frequentemente considerados “justificáveis” do que o inverso.
A lei ficou famosa após a absolvição, em 2013, de George Zimmerman, que matou o jovem negro Trayvon Martin, de 17 anos, desarmado. Contudo, nas imagens do interrogatório policial, os detetives questionam a decisão de Lorincz de pegar numa arma apenas dois minutos depois de o operador do 112 lhe dizer que os polícias estavam a caminho.
Durante a sentença em 2024, o juiz afirmou que Lorincz agiu mais por raiva do que por medo. O filme inclui excertos da cobertura mediática nacional do caso. No funeral de Owens, o reverendo Al Sharpton prestou homenagem à vítima, dirigindo-se aos seus filhos: “Se ela permitisse que as pessoas vos desrespeitassem, cresceriam a pensar que podiam sempre ser desrespeitados.”
Já Skye Borgman, realizadora do documentário, disse à revista “TIME” que “se não testemunharmos crimes como este, continuarão a acontecer na escuridão”. Com este projeto, quis transformar as imagens das câmaras corporais — “uma ferramenta criada para proteger agentes” — num instrumento que expões as suas falhas.
Tendo conhecido pessoalmente a família Owens, a cineasta questiona por que motivo a polícia nunca envolveu um assistente social ou mediador para resolver o conflito e defende que as autoridades deveriam ter agido mais cedo, tendo em conta as armas que Lorincz tinha em casa e as múltiplas chamadas de emergência sem fundamento. “A polícia não precisa de entrar com armas em punho para falhar à comunidade”, argumenta. “Se uma pessoa é capaz de pegar numa arma para resolver uma disputa trivial com o vizinho, do que mais será capaz?”, questiona.
Durante o julgamento, que decorreu em 2024, a defesa de Susan Lorincz alegou que agiu em legítima defesa, ao abrigo da lei Stand Your Ground. Em agosto do mesmo ano, foi condenada por homicídio involuntário, depois de acusações anteriores de negligência e agressões terem sido retiradas. Atualmente, encontra-se a cumprir uma pena de 25 anos na prisão Homestead Correctional Institution, na Flórida.
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