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“Não tenho saudades, vivi tudo intensamente.” Como a infância moldou Sara Tavares

Falou sempre sem mágoa sobre os primeiros anos de vida, apesar de ter sido entregue a uma ama quando tinha apenas quatro.

O nome da avó Eugénia era quase sempre tema recorrente nas entrevistas. Não tinha, com Sara Tavares, qualquer laço de sangue — mas tinha um laço afetivo que ficou para a vida. Quando já sem pai presente, a mãe da cantora decidiu ir para o Algarve à procura de trabalho, os irmãos acompanharam-na. Para trás ficou Sara, apenas com quatro anos.

A babysitter acabou por se tornar numa espécie de avó emprestada: aceitou acolher e cuidar da jovem. Um gesto que haveria de recordar recorrentemente em público, sempre que falava sobre a infância atribulada. Sara Tavares morreu este domingo, 19 de novembro, vítima de um tumor cerebral contra o qual lutava há uma década. Tinha 45 anos.

Os pais deixaram Cabo Verde e rumaram a Portugal, terra onde nasceu Sara e os seus dois irmãos, a irmã mais nova e o irmão mais velho. Pouco tempo depois, o pai de Sara deixou Portugal. Era, segundo a cantora, um “homem irrequieto”.

Tinha quatro anos quando foi forçada a entender a decisão da mãe em mudar-se para o Algarve e deixá-la na casa do Pragal, aos cuidados da senhora que fazia de babysitter, mas que se revelou muito mais do que uma ama. “Fiquei cá com a minha avó porque ela estava apaixonada por mim”, recordava Tavares em 2012, em entrevista ao “Alta Definição”.

“A irmã mais nova ainda era muito bebé. Precisava de estar aos cuidados da mãe. O meu irmão já era grandinho, tinha cinco anos, já fazia as coisas por si. E a minha avó precisava de companheira, era uma senhora idosa. Acabou por se afeiçoar muito a nós e eu acabei por ficar para trás. Não sem muito bem o porquê, mas foi muito harmonioso entre todos.”

A decisão da mãe, que vivia com dificuldades financeiras, foi acolhida com compreensão, à época e anos mais tarde, com Sara já adulta. “Percebi [a decisão]. Acho que os miúdos percebem só com um olhar. Podem depois levar uma vida inteira a traduzir isso para o consciente, mas percebem o olhar da mãe.

Sabem que ela vai voltar. Se ela te deixa em algum sítio é porque sabe que vais ficar bem. E se calhar vais ficar mais protegido naquele sítio do que ao ir com ela.”

Se a relação com a mãe acabaria por ser reatada, a que tinha com o pai foi mais difícil de normalizar, sobretudo porque passou 18 anos da sua vida sem o ver. Uma ausência que foi sentida. “Sim, houve alturas em que sentia falta da presença deles, da proteção. Às vezes pensava, mas porque é que eu fico para trás? Zangava-me, mas passou. Penso que isso tem-se resolvido com o passar dos anos.”

Ficou então em Almada, onde cresceu sob os cuidados da avó Eugénia, com quem passava os dias a jogar dominó e às cartas, já que não havia qualquer televisão. Cresceu também entre famílias brancas, onde o tom de pele de Sara destoava sempre. Mas se em casa, nada disso era um problema, o mesmo não se pode dizer na escola.

“Cresci longe dos africanos. Sentia-me diferente, até porque os miúdos são cruéis com essas coisas. Fazem-te sentir diferente”, contava. O sentimento esbateu-se à medida que crescia. “Achava normal [viver entre pessoas brancas], mas sentia que havia algo. Daquele lado dos bairros, viviam os africanos todos. E eu vivia deste lado (…) Coisas básicas. “Como não sabes cuidar do teu cabelo?”, perguntavam, e eu dizia: “A minha avó não me sabe pentear”. Não tinha uma mãe ou uma tia que soubesse tratar dele”, contou em 2017, ao “Observador”.

“Comecei-me a aperceber também que as outras pessoas do Pragal não me marginalizavam a mim, mas marginalizavam os outros dos bairros. “Estes pretos vêm para aqui fazer confusão!” Comecei a pensar, comecei a aperceber-me das diferenças. “Mas tu não és, tu és quase branca”, diziam-me.”

A cumplicidade com a avó adotiva era evidente. “Éramos um duo excelente, uma dupla muito cómica, embora soubesse que eu não era da família. Bastava olhar para o espelho”, recordou. A avó Eugénia não foi a única a cuidar de Sara.

“Além dela, tive também uma madrinha portuguesa que vivia na mesma rua. Funcionou um bocadinho como a minha tutora de lar (…) Ensinou-me a ver as horas, ofereceu-me o primeiro relógio. Via sempre se eu estava bem vestida, se estava em condições.”

Apesar de afirmar ter sido sempre muito bem cuidada, recorda episódios da infância em que essa diferença na cor da pele fazia mexer com a sua cabeça. “Havia um senhor da minha rua que era muito cómico, muito meu amigo. Metia-se sempre comigo. E um dia perguntou-me se gostava de cá andar e se já tinha reparado na minha cor. ‘Não gostavas de ter a cor das outras pessoas todas?’, perguntou. Disse que gostava e perguntei o que podia fazer. E ele disse para tomar banho com lixívia.”

A jovem foi para casa, agarrou na lixívia e obedeceu. “A minha avó apanhou-me a encher a banheira de lixívia. Claro que o senhor levou um raspanete. Nunca lhe passou pela cabeça que eu o fosse fazer.”

A ascendência cabo-verdiana foi um lado seu que optou por nunca ignorar. Pelo contrário. Já adulta, haveria de voltar ao país de origem dos pais, numa viagem que confessa ter servido para sarar a ferida. “Ter conhecido Cabo Verde nos últimos anos ajudou-me bastante”, revelou em 2012. Voltaria ao tema em 2017. “Fui conhecer os meus avós ao interior da ilha e percebi muita coisa. Percebi a ausência do meu pai. Percebi que a minha avó é igual ao meu pai, em versão mulher. Era fotocópia dele. Mas também era o inverso do meu pai, era de uma doçura… O meu pai é muito ácido. Ela era o reverso da mesma moeda.”

“E percebi porque é que as famílias cabo-verdianas são tão disfuncionais, que 90 por cento das crianças são educadas pelos tios, pelos avós, porque é um país de emigração. E são os emigrantes que alimentam os que estão lá. Portanto, ajudou-me imenso a fazer as pazes com os meus pais.”

Foi também numa recordação à avó que em 2012 revelou a forma muito própria como encarava o resto da vida — pouco tempo depois da recuperação da cirurgia ao tumor cerebral. “Só tenho saudades de uma pessoa na vida, que é da minha avó. Mas não tenho saudades de mais nenhum momento, nem de mais nada, porque vivi os momentos todos muito intensamente”, explicou.

“Sou assim meio-desapegada do mundo. Vivo isto um bocado como se fosse uma passagem. Também me interessa chegar à outra margem.”

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