Luchino Visconti estava obcecado. Queria encontrar o rapaz mais bonito do mundo para ser a cara do seu novo filme. Correu vários países até aterrar em Estocolmo. Sentado na cadeira de realizador, viu desfilarem à sua frente centenas de miúdos. Os seus olhos detiveram-se num.
“Lindo”, observou o italiano. “Pede-lhe para se despir”, ordenou à diretora de casting. Sentado mesmo em frente a Visconti estava um visivelmente desconfortável rapaz de 15 anos, que obedeceu.
O filme, a adaptação cinematográfica da obra “Morte em Veneza”, de Thomas Mann, contava a história de um compositor doente, já perto da morte, mas que durante umas férias encontra um jovem com uma beleza de tal forma arrebatadora que é capaz de o rejuvenescer.
Nas páginas do livro de 1912, Mann eleva o rapaz a uma beleza quase impossível. Tadzio, a personagem, tinha “cabelo cor de mel, como um Deus da mitologia grega”. “E o rapaz não é verdadeiramente humano, antes um anjo da morte.” Visconti encontrou-o em Björn Andresen, o rapaz que agora se exibia perante ele, apenas de roupa interior — e que haveria de vender como “o rapaz mais bonito do mundo”.
Andresen morreu no sábado, 25 de outubro, aos 70 anos. A notícia foi avançada por Kristian Petri, que criou o documentário “O Rapaz Mais Bonito do Mundo”, lançado em 2021, que retratava a ascensão do ator sueco ao estrelato e a forma como foi sexualizado quando ainda era menor de idade. “Foi uma pessoa corajosa com um carisma e presença incríveis em frente às câmaras”, disse o cineasta ao jornal “Dagens Nyheter”.
Antes de ser escolhido para a adaptação cinematográfica, o jovem teve que posar para as fotografias dos assistentes de Visconti. Manteve-se quieto, depois percorreu a sala e olhou para a câmara.
“Estava ao lado do Visconti quando surge este rapaz loiro. Notava-se facilmente que todo o corpo de Visconti se encheu de vida. O rapaz era de uma beleza requintada, tinha uma cara fotogénica. Foi um achado. Tinha um carisma muito especial, aparenta ser frágil e isso é realmente belo para um filme. Precisas de ter muito cuidado quando lidas com crianças assim”, revela a diretora de casting Margareta Krantz no documentário de 2021.
O processo de escolha deveria ter sido o primeiro alerta de que o que poderia parecer à primeira vista uma bênção, seria, no fundo, uma maldição. Cinco décadas depois, é essa a questão que os criadores do documentário colocam, numa história sobre os perigos da fama infantil, da exploração e das sequelas que podem alimentar.
No ano seguinte, “Morte em Veneza” estreava em Cannes. Visconti tinha feito questão de pavonear Andresen por todo o mundo, vendendo-o sob o título de “o rapaz mais bonito do mundo”. E assim, depois da estreia, tornou-se numa vedeta internacional. No melhor dos casos, era visto como um ator em ascensão. No pior, como um sex symbol adolescente.
A beleza de Andresen era quase sempre destacada. O historiador cinematográfico Lawrence J. Quirk chegou mesmo a dizer que os frames de Andresen no filme podiam ser “emoldurados e pendurados nas paredes do Louvre”. Que a personagem era representada não como objeto de uma luxúria pervertida, mas como um símbolo de beleza equiparado às grandes obras de arte.
“Tinha apenas 16 anos quando o Visconti e a equipa me levaram para um clube gay. Quase todos os elementos da equipa eram gays. Os empregados do clube fizeram-me sentir extremamente desconfortável. Olhavam para mim como se eu fosse um delicioso prato de carne”, confessou Andresen ao “The Guardian” em 2003.
Apesar do desconforto, Andresen sabia que tinha apenas uma obrigação: baixar a cabeça e seguir os passos de Visconti. “Eu sabia que não podia reagir. Teria sido um suicídio social, mas esse foi o primeiro de muitos encontros do género.”

Por essa altura, Visconti parecia ter já perdido algum do encanto por Andresen. Comentava publicamente e em tom de gozo que Andresen, agora mais velho e mais alto, havia perdido alguma da beleza.
Acabou por ser enviado pelos estúdios numa digressão pelo Japão, onde se assistia a um fenómeno quase sem precedentes: o filme tinha sido um êxito e Andresen transformara-se num dos rostos ocidentais mais conhecidos entre os japoneses.
“Já alguma vez viram fotos dos Beatles na América? Era algo desse género. Havia uma histeria à volta de tudo”, recorda. Fez de tudo por lá: assinou autógrafos, participou em anúncios e até gravou algumas músicas em japonês. Pelo caminho, a energia ia sendo alimentada a comprimidos.
“Sentia-me como um animal exótico numa jaula”, confessou em 2003, enquanto falava sobre a forma como essa vivência única lhe vedou aprendizagens normais de adolescentes que crescem longe da fama. “Ainda hoje não sei seduzir. Quando só tens que estalar os dedos há muitos ensinamentos sociais que perdes quando és uma celebridade.”
Os anos seguintes levaram-no a muitos sítios, nem todos convidativos. Chegou a viver em Paris nos anos 70, onde vivia à custa de presentes de homens ricos — quase todos homossexuais. Acreditava que eram fãs, percebeu mais tarde que apenas queriam ser vistos ao lado do rapaz mais bonito do mundo.
“Não me arrependo de ter feito o filme. Mas se soubesse o que sei hoje, teria recusado”, haveria de revelar nos anos 90, ainda a meio do percurso que o levaria a ser a estrela do documentário.

Por detrás de Andresen está também uma conturbada história de vida familiar. Tinha apenas 10 anos quando a sua mãe desapareceu. Só teria notícias suas um ano e meio depois, apenas para descobrir que tinha morrido. Foi criado pelos avós — e terá sido a avó quem o terá empurrado até ao fatídico casting. Tinha esperanças de que o neto pudesse tornar-se numa estrela.
A carreira como ator não explodiu. Pelo contrário. Andresen acabou por regressar à sua Suécia e dedicar-se a paixões que até então não pôde explorar. Foi fazendo alguns trabalhos de representação, a maioria sem grande importância — à exceção do papel em “Midsommar”, filme sensação em 2019.
Gosta mais de música do que de cinema e por isso acabou por aprender a tocar piano. Sonhava ter uma grande banda de jazz, sonho que cumpriu anos mais tarde, depois de um prolongar forçado da carreira como ator.
Chegou a viver na Dinamarca e a sonhar com uma anonimidade que nunca chegava. Continuava a ser reconhecido em todo o lado. “O pior de tudo é que ninguém presta atenção às tuas ambições, aos teus sonhos ou sequer a quem tu realmente és”, recorda.

“Lembro-me de tocar Liszt numa festa em casa de um amigo, um conhecido compositor sueco, o Karl-Erik Welin. As pessoas aplaudiram, não foi nada de especial. Mas no fim uma jovem num fato vem ter comigo e diz ‘Uau, afinal tu sabes fazer alguma coisa’.”
Acabou por criar uma banda, os Sven-Erics, fundou um pequeno teatro em Estocolmo. Pelo caminho, esbarrou com mais algumas tragédias: um divórcio e a morte de um filho pequeno.
Durante os últimos 50 anos, Andresen não teve apenas que enfrentar os problemas do estrelato infantil, mas de todas as dores que daí surgiram. Mergulhou na depressão e no alcoolismo, foi pai e hoje é um adulto muito mais atribulado do que seria se Visconti tivesse fechado os olhos por uns segundos.

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