No início do ano, vários professores de direito, economia e até de medicina de diversas universidades norte-americanas receberam uma série de exames por corrigir. Sem saberem a identidade dos alunos, reviram respostas — sobretudo de escolha múltipla — e atribuíram as notas. Só no final é que ficaram a saber que um dos alunos era, na verdade, uma máquina que, para surpresa de todos, foi aprovado em cada um dos testes.
Apesar de em nenhum deles ter tido notas exemplares, a pontuação teria sido suficiente para ser aprovado — e sem dúvida mais alta do que teriam muitos outros alunos. A proeza é apenas mais uma prova da versatilidade e capacidade do ChatGPT, uma ferramenta de inteligência artificial capaz de comunicar por escrito e de responder a questões complexas com uma eloquência e adaptabilidade que surpreendeu até os mais céticos.
Em apenas três meses, o chatbot catapultou a empresa que o desenvolveu para uma avaliação de mais de 27 mil milhões de euros, ao mesmo tempo que fez soar os alarmes na toda-poderosa Google, que reconheceu no ChatGPT um perigo iminente.
Por detrás desta e de outras inovações está Mira Murati, a CTO da empresa criadora, a OpenAI, e responsável pelo projeto do ChatGPT. Relativamente à mais recente proeza do seu chatbot mostrou-se feliz, mas reticente. “Não estávamos a antecipar este nível de entusiasmo quando lançámos ‘este filho’ no mundo. Tínhamos, aliás, algumas reticências em fazê-lo”, revelou numa entrevista à revista “Time”.
Aos 35 anos, Murati lidera alguns dos mais entusiasmantes projetos de inteligência artificial do momento. Formada em engenharia na Universidade de Dartmouth, lançou-se através da Leap Motion, uma empresa de hardware de computador que procura substituir os ratos e teclados por sensores que analisam os nossos movimentos de mãos — à imagem do que vimos, por exemplo, em “Relatório Minoritário”.
Daí saltou para a Tesla, onde se tornou numa das responsáveis pelo desenho, desenvolvimento e lançamento de vários modelos, sobretudo o Model X. Na empresa de Elon Musk colaborou também no projeto aeroespacial, antes de sair para a OpenAI, a empresa de São Francisco onde começou por ser vice-presidente sénior de Investigação, Produto e Parcerias. Atualmente é a responsável por todo o desenvolvimento tecnológico da empresa.
A atual coqueluche da OpenAI estava ainda a um mês do lançamento quando Murati se sentou frente a frente com Trevor Noah no “The Daily Show”, então para falar do outro grande sucesso da empresa, o DALL-E, um programa de inteligência artificial que cria imagens a partir de descrições de texto. As aparentes inúmeras possibilidades do software lançado no início de 2021 foram ganhando tração nos últimos meses e demonstraram o potencial das novas ferramentas.
“[O Dall-E cria imagens originais nunca antes vistas. Desde o início dos tempos que nós [humanos] criamos imagens. Simplesmente pegamos num enorme número destas imagens e introduzimo-las no sistema de IA. [O Dall-E] aprendeu as relações entre a descrição da imagem e a própria imagem, reconheceu os padrões e, eventualmente, começou a gerar imagens originais e não apenas cópias daquilo que via”, explica.
O Dall-E lançou esta corrida a software de IA que cria imagens altamente complexas e originais a partir de um par de palavras ou de descrições. Rapidamente se percebeu o poder destes programas, quando um concorrente, o Midjourney, venceu o primeiro prémio de uma competição de arte no estado do Colorado.
“A tecnologia que estamos a construir tem um efeito enorme na sociedade, mas a sociedade pode e deve ajudar a moldá-la. Debatemo-nos com uma série de questões todos os dias. Vemos esta tecnologia como uma ferramenta, uma extensão da nossa criatividade, da nossa capacidade de escrita. É uma ferramenta”, explicou em outubro no “The Daily Show”. “E não há sequer nada de particularmente novo nesta ideia de ter um ajudante. Até na Grécia antiga havia o conceito de ajudantes humanos, de quando dás poder infinito de conhecimento, ou de força, terás que estar sempre atento às vulnerabilidades.”
Ao mesmo tempo que o mundo se deixava fascinar pelas possibilidades quase mágicas do criador de imagens — e enquanto milhões de designers pelo mundo fora temiam perder o emprego —, Murati confessava alguns receios relativamente ao impacto da criação, sobretudo ao seu uso para efeitos nefastos, como a desinformação e a criação de fake news cada vez mais elaboradas. “A desinformação e o impacto que as nossas tecnologias têm na nossa sociedade são questões muito importantes. É preciso trazer o público connosco, fazer com que tenham consciência da existência destas tecnologias de uma forma responsável e segura. Também por isso decidimos colocar o Dall-E publicamente disponível, mas com algumas salvaguardas. Queremos que as pessoas saibam do que ele é capaz (…) Não permitimos, por exemplo, que ele gere imagens de figuras públicas.”
Para contornar todas estas questões mais delicadas, mas também a forma como esta tecnologia pode impactar a sociedade, a OpenAI tem nas suas equipas vários especialistas em ética e filosofia. “Acredito que todas estas questões gigantes não deveriam estar apenas nas mãos dos tecnólogos”, frisa. Sobre o potencial destas tecnologias para tornar redundantes alguns empregos, mostra-se “otimista”. “São ferramentas que podem alargar o nosso leque de capacidades, de habilidades, torná-las melhores. Contudo, pode ser que no futuro tenhamos alguns sistemas que possam automatizar diversos trabalhos. Creio que, tal como outras revoluções pelas quais passámos, haverá novos empregos e outros que se irão perder. Alguns postos serão novos e outros exigirão outro tipo de treino e aprendizagem.”
E eis que três meses mais tarde, a OpenAI e Murati veem-se novamente no centro de outro fenómeno de popularidade. A capacidade do ChatGPT em alimentar diálogos altamente realistas revelou o seu enorme potencial. Na Google, o chatbot é visto como uma séria ameaça ao monopólio da empresa na pesquisa por informação na Internet.
Por todo o mundo, escolas e universidades começam a banir o uso da ferramenta, com medo de que possa ser usada por alunos para copiar respostas altamente credíveis. Tal como o Dall-E, também o ChatGPT tem inúmeras limitações, algumas naturais, outras impostas pelos seus criadores.
“Estou curiosa para perceber quais as áreas em que irá começar a ser verdadeiramente útil para as pessoas, ao invés de ser penas uma coisa nova, de ser a mais recente curiosidade”, nota Murati em entrevista à “TIME”.
O ChatGPT está limitado no tempo e na atualidade, isto é, tal como o Dall-E, possui apenas o conhecimento que lhe foi introduzido de início. Na versão atual, o chatbot desligou-se do mundo em 2021 e, portanto, assumirá ainda que a Rainha Isabel II está viva. Outro perigo: quando desconhece a resposta, pode simplesmente inventar factos por forma a manter o diálogo vivo.
“O ChatGPT é um modelo conversacional — uma gigante rede neural treinada para tentar adivinhar a próxima palavra — e os desafios que enfrenta são semelhantes aos que vemos nos outros modelos de linguagem: pode inventar factos.”
A eloquência com que o chatbot apresenta os factos pode ser perigosa: é difícil detetar as informações inventadas quando não se domina o tema. “Esse é de facto um dos principais desafios. Nós escolhemos o diálogo como forma de interação porque podemos sempre dizer-lhe: ‘Tens a certeza? Olha que eu acho que….’ E o modelo tem a oportunidade de entrar numa conversa, tal como faríamos com qualquer outro ser humano.”
Por todo o mundo multiplicaram crónicas feitas apenas com base no ChatGPT que é verdadeiramente prodigioso. Pode escrever convites de casamento a pedido; artigos jornalísticos; guiões para filmes. Podemos escolher o tom ou o estilo da escrita, de um adolescente apaixonado a um psicopata enraivecido, ao estilo de Ernest Hemingway ou de Hunter S. Thompson.
Se no mundo da escrita é apontada alguma falta de utilidade prática ao ChatGPT — pelo menos nas tarefas que requerem maior criatividade e talento —, no mundo da programação, o ChatGPT é já visto como um assistente super valioso, capaz de poupar horas de trabalho aos programadores.
Questionada sobre que problemas veio, de facto, o ChatGPT resolver, Murati dá um passo atrás. “Neste momento estamos ainda na fase da revisão de toda a investigação, por isso não posso falar disso com confiança. Creio que podemos ver que tem potencial para revolucionar a forma como aprendemos”, nota. “Uma turma de 30 pessoas, onde todas têm contextos diferentes, maneiras distintas de aprender, e onde todas têm que estudar o mesmo currículo — com uma ferramenta como o ChatGPT podes ter uma conversa ininterrupta sobre os temas, de forma a conseguires aprender tudo de uma forma que se adapta ao nível de compreensão e de conhecimento de casa um. Tem imenso potencial para nos ajudar na educação personalizada.”
Reconhece que toda a tecnologia, quando disponibilizada de forma tão livre, pode ter “uma vertente positiva e uma negativa” e mostra-se preocupada com os perigos da inteligência artificial. “A tecnologia molda-nos e nós moldamos a tecnologia. Há muitos problemas complicados para resolver. Como é que conseguimos que o modelo faça o que nós queremos? Como é que nos certificamos que está alinhado com a intenção de o colocarmos ao serviço da humanidade? É preciso dar voz a filósofos, cientistas sociais, artistas, pessoas das humanidades.”
Admite que a tecnologia “pode ser usada por pessoas más” e que “não é cedo” para começar a chamar os governos e os legisladores para começarem a regular o funcionamento e o possível impacto destas criações. “É importante que toda a gente se envolva no processo, dado o impacto que estas tecnologias têm.”