Coimbra foi a cidade que viu nascer a mais recente escritora e produtora de conteúdos, Joana Dias, de 46 anos. Cresceu sempre rodeada de livros e ler e escrever eram os seus passatempos favoritos. Estudou Línguas e Literaturas Modernas e, em 2003, entrou no mundo na televisão, mais precisamente, como repórter na SIC. Anos mais tarde, a paixão passou para a rádio. Nesta fase, conseguiu concretizar o seu sonho de escrever, através da criação dos guiões dos programas.
Entre os vários projetos onde esteve envolvida, Joana sentiu na pele a realidade de grande parte das mulheres de todo mundo: a violência doméstica. Apesar de ter sido um episódio traumático, foi o ponto de partida para a criação do podcast de sucesso da Antena 1, “A mim, Nunca”, que posteriormente se transformou numa série na RTP Play com o mesmo nome.
Em junho deste ano, Joana transportou a sua história para a literatura, com o lançamento da sua primeira obra “Nós, as Indecentes”. O livro conta a história de uma mulher que cresceu convencida que nunca seria boa em todas as áreas da vida, passando pelos diversos “espelhos do percurso feminino”, como se pode ler na sinopse. Desde “a educação em colégio de freiras à necessidade urgente de encontrar um amor redentor”, todos os passos levam-na a um “somatório de relações tóxicas, e uma que quase lhe custa a vida”.
O livro está disponível fisicamente por 16,50€ e em versão ebook por 11,99€. A propósito desta novidade, a New in Coimbra conversou com Joana Dias para conhecer a sua inspiração, porque decidiu escrever a primeira obra e o que esperava deste lançamento.
Leia a entrevista na íntegra que a autora deu à New in Coimbra.
Com um percurso dividido entre a televisão e a rádio, quando é que a escrita surgiu na sua vida?
Desde miúda que sempre adorei ler e escrever. A certa altura, pensei que poderia exercer jornalismo e apercebi-me que gostava de comunicação social. Por acaso, participei num casting para o “Curto Circuito” e fui passando em todas as fases. Foi completamente inesperado e, desde essa altura, deixei Coimbra para morar em Lisboa. Mantive-me na SIC, trabalhei na SIC Mulher e Radical até surgir a oportunidade na rádio. É uma forma completamente diferente de comunicar e, com o tempo, descobri que também gosto muito dela. Nessa altura, escrevi vários programas de autor e comecei a fazer o que mais queria: profissionalizar a escrita. Entrei na rádio ZIGZAG e escrevi para os mais novos. A nível pessoal, vivi uma realidade de violência doméstica e escrever foi uma forma de me libertar. Nesse sentido, escrevi o podcast e depois surgiu a oportunidade de co-criar uma série na RTP Play. Nesse momento, o produto deixou de ser apenas meu e partilhei-o com várias pessoas. A escrita sempre me acompanhou enquanto adulta e sempre tive o desejo e o sonho ingénuo de escrever um livro e ser autora.
Por já ter escrito o podcast e a série, como correu o processo de adaptação da sua história para um livro?
É sempre um processo difícil, porque escrever algo implica que deixa de ser apenas meu. Quando estava a terminar os episódios do podcast “A mim, Nunca”, apercebi-me que havia muito material que ainda não tinha utilizado ou explorado. Existia tanto para contar e tantas realidades dentro de mim, de vários homens e mulheres, que tinha de escrever uma história sobre isso. Tinha de fazê-lo e tornou-se a minha missão. Pensei que havia tantas mulheres que passaram pela minha realidade que se sentem mal e culpadas por isso lhes estar a acontecer, que se escrevesse um livro de esperança, de uma forma nua e crua, talvez as conseguisse ajudar também. É uma mensagem muito importante, para deixarem de ser prisioneiras nas próprias vidas. Nunca pensei que a violência doméstica se tornasse no tema do primeiro livro, mas, por outro lado, é uma história que ultrapassa a própria realidade da minha experiência. É um livro muito cru que pode chocar as pessoas e com a minha liberdade percebo que também permito a liberdade de outras.
É necessária vulnerabilidade para contar a própria história e, consequentemente, a de outras tantas mulheres. Como ganhou coragem?
A maioria das pessoas acha que ser vulnerável é ser submisso e fraco, mas na realidade é o primeiro estado de força. Comecei a ser vulnerável, quando perdi o medo e, principalmente, quando não fiquei em silêncio. Este é um passo importante, porque o silêncio é o maior aliado do agressor, que tenta controlar sempre as vítimas através do isolamento e repressão da liberdade. A culpa nunca é da vítima e todos temos direito à liberdade, a vestir o que queremos e fazer o que nos apetece. O primeiro passo deve ser sempre pedir ajuda às pessoas mais próximas. No caso de não ser possível, existem associações que podem ajudar nesse sentido. Pode parecer assustador, mas é essencial não manter o silêncio e esta é a minha forma de ganhar força.
Sendo um livro de autoficção e partindo de uma situação real, que narrativa pretendia contar?
O principal objetivo é que fosse esperançoso e verdadeiro ao mesmo tempo. Milhares de mulheres morrem vítimas de violência doméstica e queria desconstruir este final. Imagine passar por uma situação destas e assim que liga a televisão ser bombardeada de notícias de mortes de mulheres nessas mesmas circunstâncias? Para quebrar a barreira do medo também é necessário um reajuste da comunicação social e da forma como as notícias são dadas que, direta ou indiretamente, acabam por dar sempre força ao agressor. Não considero que tenha um final feliz, mas sim realista, porque sou uma mulher que viveu nessas circunstâncias e saiu viva. Queria criar uma mulher com traços de coragem e força, que todas as mulheres têm. A verdade é que podia escrever um livro em que a vítima morresse à semelhança do que acontece, mas não quero dar mais força aos agressores. É um livro de força que mostra que a mulher desde que nasce é culpada por tudo, independentemente do caso, e quero desconstruir esse preconceito imposto pelo patriarcado.
Para quem ainda não leu, como descreve “Nós, As Indecentes”?
É uma história que acompanha a vida de uma mulher desde a infância à vida adulta. Ela cresce e transforma-se numa mulher que passa pela realidade da violência doméstica e desconstrói todo o seu ser. Não é um livro só para as mulheres, também é para os homens. Podem ler e identificar algumas atitudes que possam ter feito sem se aperceber ou, por outro lado, concluir que sempre trataram as mulheres com respeito. Às vezes, é necessário haver um clique para existir uma mudança, estamos sempre a aprender.
Como decorreu o processo da escrita da obra?
Após ter lançado o podcast, recebi imensas mensagens de apoio e simplesmente houve um dia que decidi que estaria na hora de escrever a própria história, quase como um chamamento criativo, por assim dizer. Comecei em janeiro e terminei em meados de maio. Na altura, já tinha uma linha temporal que queria seguir, ou seja, acompanhar a personagem desde a infância, mas não sabia como ia terminar. Não é muito bonito de dizer, mas foi um ‘vómito criativo’, em que escrevi tudo de uma só vez. Todos os dias, escrevia a história e apercebi-me que era um enorme puzzle. A uma certa altura, imprimi e colei nas paredes do meu quarto e comecei a ler a montar tudo de novo. Precisava de ver o livro de uma nova perspetiva e depois disso comecei a rescrever tudo. Foram meses intensos de escrita.
Depois de ter sonhar com este momento, qual foi a sensação de estar finalmente publicado?
Foi uma sensação extraordinária, é um misto de emoções porque já não estava nas minhas mãos. Surgem imensas dúvidas e questões, se fiz a escolha certa ou não, mas é seguir em frente. Quando recebi finalmente uma cópia do livro senti um misto de ansiedade, com medo, certeza e coragem. Agora, o livro segue o próprio caminho e deixa de ser apenas meu e é isso que torna este processo mágico.