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O bolo-rei está cada vez mais artificial — e estes são os sinais a que deve estar atento

Dizem-se de "fabrico próprio" mas usam misturas pré-feitas, corantes e aromatizantes. O fenómeno está "a tornar os bolos-reis todos iguais".
É hora de testar o seu bolo-rei favorito.

Está quase sempre nas mesas de Natal e, ainda assim, raramente é consensual. Há quem não imagine um jantar de consoada sem ele, outros preferem nem o ver por perto. Esteja-se numa ou noutra trincheira relativamente ao bolo-rei, a verdade é que o bolo que comíamos há umas décadas não é o mesmo que hoje pousa nas nossas mesas.

Numa das suas crónicas recentes, Miguel Esteves Cardoso apontava à falta de qualidade dos bolos-reis. Um paradoxo que faz com que uma das criações tão portuguesas seja tão maltratada e esse é, contudo, um fenómeno que se observa com cada vez mais frequência, mesmo nas pastelarias com fabrico próprio. Um fabrico próprio que, para a formadora e consultora de pastelaria Joana Martins, deveria vir entre aspas.

“Eu não estou contra o facto de que se usem outros métodos de produção do bolo-rei que não o tradicional”, refere à NiT. “O que estou contra é que digam que se trata de fabrico próprio, porque isso pressupõe que estejam a partir ovos, a raspar laranjas e limões, um fabrico artesanal. Não é isso que maioritariamente acontece.”

O problema, aponta, está na crescente industrialização da pastelaria. A produção em massa nas grandes marcas e grandes superfícies acabaria por influenciar toda a forma como consumidores avaliam os produtos e, por consequência, como as pastelarias e negócios familiares reagem à revolução no mercado.

Na produção em massa privilegia-se a quantidade em detrimento da qualidade. Os preços baixos obrigam a margens curtas e a uma maximização dos lucros. “Fazer um bolo-rei não é barato. Produzir um não fica por menos de oito ou nove euros. Através do método tradicional, pode demorar cerca de dois dias a fazer”, explica a formadora.

É natural, portanto, que estas grandes marcas recorram a atalhos para produzir mais bolos-reis em menos tempo: recorrem a misturas pré-feitas, ao uso de essências sintéticas, saborizantes, corantes e emulsionantes. Muitos pequenos produtores e pequenas pastelarias acabam por ceder à pressão e lutar com as mesmas armas.

“Acho que deveriam unir-se para terem força e fazerem frente à industrialização, não em termos de números, mas em termos de qualidade”, explica. “A indústria das farinhas e dos aditivos aproveitou-se da fragilidade para vender os produtos. Promovem, por exemplo, misturas pré-feitas aos quais basta juntar água, como forma das pastelarias ganharem mais dinheiro, poupando na despesa.”

E o bolo-rei da sua mesa de Natal, é industrial ou artesanal?

O uso dessas misturas pré-feitas é o equivalente caseiro a cozinhar um bolo com um pré-preparado de supermercado ao qual basta juntar água. Ousaríamos dizer que fomos nós que cozinhamos o bolo? Sendo honestos, não. A verdade é que há pastelarias que recorrem a essas misturas, cujas falhas tentam depois “disfarçar” com outros aditivos.

“Não condeno os pequenos produtores, porque para fazer uma produção artesanal também é preciso muita mão de obra. Procuram uma forma de ganhar dinheiro com menos mãos. Antigamente tínhamos uma pessoa a amassar, outra a cortar os frutos, outra a macerar”, justifica Joana Martins.

Do outro lado está o consumidor, quase sempre manietado neste jogo de lucros. A cada vez mais frequente utilização dos mesmos pré-preparados, dos mesmos corantes e aromatizantes, tende a moldar o paladar de quem consome.

“Chega-se a um ponto em que os que são feitos de forma tradicional parecem não saber bem, não saber a bolo-rei, isto porque saem fora do padrão a que estamos habituados”, explica a pasteleira que também produz e vende os seus bolos-reis. “Há mercado para os bolos-reis bem feitos. Eu faço produção no Natal e o cliente não pergunta o preço porque sabe o que vai comer, sabe que não uso conservantes ou corantes.”

“Inevitavelmente, com esta industrialização, os bolos-reis passam a ser todos iguais. Sabem todos ao mesmo”, remata.

À procura do verdadeiro bolo-rei

Nas aulas que tem dado nos últimos meses, Joana Martins tem ensinado os aspirantes a usar a cerveja preta para auxiliar a fermentação natural. São fermentações que levam o seu tempo, acontecem a dois e três tempos e que não recorrem aos atalhos dos espessantes e emulsionantes.

“A fermentação deve acontecer no mínimo de um dia para o outro, entre seis a oito horas, e o bolo deve passar por um mínimo de três processos de levedação. Queremos deixar o fermento regenerar-se, dar-lhe força. A massa do bolo-rei é uma massa de força precisamente por esse processo”, diz. “É isso que lhe dá força e estrutura, elasticidade.”

Quando isso não acontece, isto é, quando os tempos de levedação são ignorados, “a elasticidade só acontece de forma artificial”. “O bolo-rei vai crescer no forno e o processo é encurtado”, conclui. E depois? De que forma é que isso afeta o consumidor?

Segundo Joana Martins, é preciso treinar o palato para ir identificando estes sinais de alerta de que estamos a comprar bolo-rei industrial vendido como bolo-rei artesanal. O primeiro sinal? O aroma, ou melhor, o cheiro a fermento.

“Há muitos bolos-reis que ainda não os colocámos na boca e já cheiram a fermento”, nota. E não deve ser assim. “Não devem ter um cheiro intenso a fermento, mas sim o de bolo cozido. Se cheirar a fermento, é sinal de fermentação rápida, feita a martelo como costumo dizer.”

Há formas mais fáceis de detetar o uso destes atalhos, sobretudo nos bolos-reis vendidos nas grandes superfícies que trazem habitualmente a composição nutricional. “Se virmos no rótulo coisas estranhas, espessantes, corantes, emulsionantes, é logo um sinal de que não passou por um método artesanal.”

Se procura o bolo-rei autêntico e o mais natural possível, deve estar atento a outros sinais, desde logo, ao brilho. “Um bolo-rei demasiado brilhante, muito pintadinho, é outro mau sinal. Normalmente recebem um brilho frio para lhe dar uma cor que não tem naturalmente.”

A partir daqui, a análise tem que ser mais cuidada e implica abrir o bolo, algo que pode fazer com o exemplar que costuma levar para casa. Próximo teste, o da cor.

“Se estiver demasiado amarelo, também é mau sinal. É sinal do uso de corantes”, nota a formadora. É outro problema que começa na cozinha, no uso de ovos de pacote ou em pó. Recorre-se depois ao uso de corantes amarelos ou até dos específicos com “cor de gema de ovo”.

A cor da massa do bolo-rei pode ser reveladora.

“O uso desses ovos obriga também a compensar as alterações na massa com espessantes, corantes e levedantes”, nota. Pretende-se, portanto, que a massa seja de um amarelo pálido, sinal de que foram usados ovos verdadeiros e que os corantes não passaram pela massa.

“A massa pressupõe-se que esteja também meia acastanhada, sinal de que levou cerveja ou que os frutos foram macerados em vinho do Porto”, nota. Há ainda outra forma de detetar e confirmar o uso destes corantes durante a prova.

“Para quem tem mais sensibilidade na prova, percebe-se que ao fim de várias fatias, provocam um pequeno arranhar na garganta. Com as essências e aromas é pior ainda, deixam um ardor ligeiro.”

Outro dos casos flagrantes passa pelo uso de aromas de limão e laranja, ao invés do uso de raspa de limão ou de laranja. “É uma substituição que não tem perdão e usam-se muitas vezes esses sabores para tentar camuflar o facto de serem usados tantos processados na massa.” Segundo a formadora, esses aromatizantes “são bases com teor alcoólico”, cujo álcool evapora no forno e “leva consigo os aromas”. “Só vamos sentir o sabor.”

É um flagelo que se alastra por casas maiores e mais pequenas e que preocupa quem se recorda ainda do sabor do bolo-rei caseiro e tradicional. “Há pastelarias que eram incríveis há 20 ou 30 anos e que hoje se renderam ao que todos os outros fazem, ao uso de corantes, saborizantes”, diz. “O bolo-rei perdeu a graça e, assim, tende a morrer.”

Um problema de sabor ou de saúde?

Seria necessária uma enorme dose de negação para que nos convencêssemos de que um bolo-rei é uma opção saudável. A “elevada densidade calórica” e de açúcar não aconselham a um consumo “frequente e abundante”, explica à NiT a nutricionista Márcia Marques. “O consumo não representa nenhum perigo para a saúde, quando consumido de uma forma esporádica e controlada.”

Deve, contudo, procurar-se um consumo esporádico, algo que “vale para qualquer outro produto rico em açúcar, gordura, calorias e com um alto nível de industrialização”. A industrialização traz consigo o uso de corantes e conservantes que, segundo a nutricionista, podem ser de origem natural ou artificiais.

“Importa dizer que as substâncias utilizadas na União Europeia, estão sujeitas a rigorosos testes de toxicidade, que atualmente validam a segurança da sua utilização”, nota. “Na verdade, para alguns corantes a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) estabelece níveis de ingestão diários aceitáveis (ADI), ou seja, uma quantidade diária a ser consumida pelo ser humano, sem que represente um perigo para a saúde, sendo que é bastante improvável ultrapassar estas quantidades diárias.”

Segundo a nutricionista, “a literatura diz-nos que ainda existem algumas dúvidas sobre o uso de diferentes corantes simultaneamente, o que se verifica em alguns produtos alimentares”, bem como “a sua interação com substâncias farmacológicas e ainda efeitos ao nível de neurodesenvolvimento”.

Cita, por exemplo, estudos de potenciais ligações entre o consumo dos corantes E102 e E211 e sintomas de hiperatividade. “Ainda sem evidência suficiente para que a EFSA ou mesmo a FDA considerem haver perigo no seu consumo”, frisa a nutricionista.

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